
Há pousadas que acolhem o viajante. Há outras que o devolvem a si mesmo.
E há aquelas, raras e perigosas, que devolvem mais do que um único “eu”.
Ao parar por uma noite em Santana do Sincorá, Vital acredita ter encontrado apenas um quarto simples, com móveis gastos e uma recepção silenciosa. Nada que anuncie mistério algum — até que ele percebe a peculiaridade do lugar: espelhos em todas as paredes, refletindo versões suas que insistem em não obedecer ao movimento do corpo real.
O que começa como curiosidade logo se transforma em inquietação. Cada espelho parece abrir para um quarto diferente — e para um Vital diferente. Um religioso, um homem do futuro, um homem tenso, vigilante, à espera de alguém que não chega. Outras dimensões? Outras possibilidades? Ou apenas o que a mente recusa enxergar quando está desperta demais?
A lógica se rompe quando uma dessas versões se movimenta com autonomia: não é reflexo, não é ilusão — é cena. Uma cena íntima, doméstica, inquietante. E, como toda verdade que insiste em vir à tona, ela não se cala. Vital testemunha uma violência muda, sem som, sem explicação, mas com uma precisão que atravessa o espelho e o abala por inteiro.
Desesperado, ele tenta fugir dos quartos, dos reflexos, das versões de si mesmo que talvez carreguem aquilo que ele passou a vida evitando enxergar. Mas a pousada, tão pequena, parece abrir para algo imenso: um precipício, a Chapada, a estrada, e ele — sempre ele — tentando escapar de uma pergunta que tem o peso de um labirinto.
Porque, no fim, não se trata dos espelhos.
Trata-se do que cada um deles ousa revelar:
quantas vidas cabem em um só homem — e qual delas é verdadeiramente sua.